DEPOIS DO ALTAR, VEIO O SUICÍDIO.
“… Conflitos externos e temores internos. Deus, porém consolou-nos com a chegada de Tito.”
(Paulo em carta aos Corintos)
Ano de 2016, dentro de 15 dias três padres cometem suicídio: O padre Ligivaldo dos Santos, da Paróquia Senhor da Paz, em Salvador (BA), aos 37 anos, atira-se de um viaduto. Oito dias depois, o Pároco da Igreja de São Bartolomeu, em Corumbá (MS), é encontrado enforcado, dentro de casa, e após quatro dias um padre de grande popularidade, Renildo Andrade Maia, de 31 anos, Pároco da Igreja de Jesus Operário, em Contagem (MG), é encontrado morto.
Ano de 2017, em Cornélio Procópio (PR) o Pastor Ricardo Moisés da Igreja Assembleia de Deus, com 28 anos de idade, se enforca em sua casa que ficava nos fundos da igreja. Dois dias depois, o pastor Júlio César Silva, ex-presidente da Assembleia de Deus Ministério Madureira em Araruama (RJ) e sobrinho do pastor Oídes José do Carmo, presidente da Assembleia de Deus Ministério Campinas e um dos maiores lideres da Assembleia de Deus Madureira no Brasil, tira a própria vida por enforcamento.
Segundo pesquisa de 2008 da Isma Brasil, organização de pesquisa e tratamento do estresse, apontou que a vida sacerdotal é uma das profissões mais estressantes e aponta que naquele ano, 448 entre 1,6 mil padres e freiras entrevistados (28%) se sentiam "emocionalmente exaustos". De acordo com o Instituto Schaeffer, “70% dos pastores lutam constantemente contra a depressão, 71% se dizem esgotados, 80% acreditam que o ministério pastoral afetou negativamente suas famílias e 70% dizem não ter um amigo próximo”.
"Todos me abandonaram", escreve o apóstolo Paulo para seu amigo Timóteo (2 Tm 4.16). O crime bárbaro do incêndio de Roma no ano 64 d.C., é imputado aos cristãos, muitos foram mortos e outros foram aprisionados, o apóstolo era um destes, em sua primeira defesa, ninguém se manifestou a seu favor, estava sozinho, todos os amigos o abandonaram. Muitos cristãos da Ásia poderiam ter ido a Roma testemunhar a seu favor, mas não o fizeram, pois sentiram vergonha. O termo grego para ânimo é anepsixen que significa refrescar, somente a presença da água refresca aquele que está com sede e “Num mundo que se faz deserto, temos sede de encontrar um amigo” diz Antoine de Saint-Exupéry, a solidão e o isolamento de um líder, a falta de alguém que lhe ouça para além de seu título e posição impõe marcas e traumas difíceis de serem esquecidas.
Mas houve um amigo que visitou Paulo, ele se lembra disso: “Porque, muitas vezes, me deu ânimo e nunca se envergonhou das minhas algemas” (2 Tm 1.16), seu nome era Onesímoro. Viajou de Éfeso a Roma, colocou-se em risco: “Tendo ele chegado a Roma, me procurou solicitamente até me encontrar” (2 Tm 1.17), para estar ao lado do amigo nos momentos mais difíceis da sua vida. “É preciso amor pra poder pulsar. É preciso paz pra poder sorrir. É preciso a chuva para florir”, canta Almir Sater falando de companhia, da necessidade de amigo pra se compreender, e conclui na canção: “Todo mundo ama um dia, todo mundo chora. Um dia a gente chega e no outro vai embora. Cada um de nós compõe a sua história”, precisamos ter alguém que escute nossa história, precisamos de um amigo que não se envergonhe de nossas algemas.
"Somos feitos de carne, mas temos de viver como se fôssemos de ferro”, escreveu Freud, o pai da Psicanálise. Estava vivendo uma fase difícil, seus melhores amigos e fiéis discípulos o estavam abandonando, então Freud escreve uma carta a Oscar Pfister com uma pergunta inquietante: "Por que nenhum de todos esses devotos criou a psicanálise, por que foi necessário esperar por um judeu completamente ateu?", e Oscar Pfister, vinte dias após, responde: "Porque devoção ainda não significa gênio de descobridor, e porque os devotos em boa parte não foram dignos de produzir esses resultados". E, reitera que "quem vive para a verdade vive em Deus, e quem luta pela libertação do amor, segundo 1 João 4.16, permanece em Deus. Se o senhor se conscientizasse e experimentasse a sua inserção nos processos mais amplos, o que a meu ver é tão necessário como a síntese das notas de um sinfonia beethoveniana para formar a totalidade musical, eu gostaria de dizer também do senhor: Jamais houve cristão melhor”.
"Como o ferro com o ferro se afia, assim, o homem, ao seu amigo", diz o livro de Provérbios 27:17. Durante quase 30 anos, entre 1909 e 1938, Freud, que se definia como "um herege incurável”, manteve estreita amizade com Oskar Pfister, um amigo muito diferente, teólogo e pastor da Igreja Reformada Suíça, foi professor e psicanalista, por influência do próprio Freud. Um dos poucos amigos com quem não teve atrito e que se manteve fiel até o fim, inclusive ajudando a família Freud a fugir do nazismo, demonstrando uma profunda amizade. Questionado pelo amigo de Viena se seu ateísmo não lhe incomodava, ele responde prontamente: “Um adversário de grande capacidade intelectual é mais útil à religião que mil adeptos inúteis”. A última carta do Pastor Suíço é de 12/12/1939, endereçada à viúva Freud, qualificando seu amigo de "magistral e ao mesmo tempo infinitamente bondoso titã".
"Elias, foi sentar-se embaixo de um pé de zimbro e pediu a morte", registra o livro de 1 Reis 19:4, pois naquele momento ele estava se sentindo sozinho. “Solto a voz nas estradas já não quero parar, meu caminho é de Pedra como posso Sonhar? Sonho feito de brisa, vento vem terminar, vou fechar o meu pranto, vou querer me matar”, canta melodiosamente o grande Milton Nascimento. Elias havia dado tudo de si para sua nação, mas não havia recebido nada em troca, isto causou dentro dele um sentimento de abandono. “Depois que uma pessoa perde o respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades – depois disso fica-se um pouco um trapo”, escreveu Clarice Lispector em uma carta à Olga, sua secretária e amiga.
A vida sacerdotal muitas vezes exige um preço para além do que se pode pagar, é quando se torna pesado e solitário, as pessoas demandam muito para si, poucas querem ouvir o humano que grita no sacerdote, um humano que quer dançar, que deseja cinema, que anseia por um teatro, ou mesmo pelo ócio de uma boa e prazerosa leitura na companhia de amigos sinceros. Não se pode esquecer que as exigências sacerdotais muitas vezes ignoram os aspectos emocionais humanos, como denuncia o escritor de Eclesiastes 3.4: “Tempo de chorar e tempo de rir, tempo de prantear e tempo de dançar”.
Sem esquecer as exigências morais que não admitem falhas ou erros naqueles que são vistos como pessoas melhores ou mais santas, e que trazem uma meta difícil de sustentar, pois é da natureza humana cometer erros. Exigir uma super-humanidade de um líder o coloca em um lugar de isolamento. Como continua Clarice Lispector em sua carta: “Não pense que uma pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro”, e num parágrafo á frente: “Há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo o interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu. Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões – cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força”. Na busca em se tornar o que a comunidade anseia e busca, o sacerdote deixa de existir, e em frente ao desespero que grita a verdade do inalcançável a única opção que se enxerga é a fuga da dor e assim nasce o desespero que leva ao suicídio.
Nessas horas penso naquele que se colocou para a humanidade como um amigo e diz o que um amigo de verdade faz em Mateus 25.35,36: “Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver”, um amigo de verdade nunca abandona, seja quais circunstâncias se imponham, como escreveu Joseph Campbell: “ele abre portas lá onde eu nem sabia que havia portas”. Por isso o Carpinteiro de Nazaré enfatiza no seu sermão: “Nem só de pão o homem viverá...”.
É preciso afeto se quisermos alcançar de fato a espiritualidade. Pr Ricardo Gondim ao passar a palavra para seu amigo Pr Ed René Kivitz, escuta deste as seguintes palavras: “Você sabe que tem um amigo, quando você já deu motivo para ele deixar de ser o seu amigo e ele não deixou de ser o seu amigo. Você sabe que tem um amigo quando ele já sabe a seu respeito coisas suficientes para não querer ser mais seu amigo, mas mesmo sabendo essas coisas ele continua sendo o seu amigo. O Reino de Deus é uma parceria de amigos”, e finaliza citando o teólogo Hans Bürky: “O reino de Deus é um reino de amigos”.
É preciso ser sacerdote, mas sem perder o foco de que o Bom Pastor é Jesus Cristo, como ele mesmo revela no Evangelho de João 10.11, somente Ele deu a vida por suas ovelhas. Cabe ao sacerdote entender que, no máximo, como diria Fernando Pessoa, é apenas “um guardador de rebanhos”, e que divide esta tarefa com outros sacerdotes e amigos, na fala do apóstolo João são: “companheiros de sofrimento, no Reino e na perseverança na fé em Jesus”. Como escreveu o querido mestre Rubem Alves: “Diante do amigo sabemos que não estamos sós. E alegria maior não pode existir. Acho mesmo que tudo o que fazemos na vida pode se resumir nisto: a busca de um amigo, uma luta contra a solidão”.
Jairo Carioca é pastor, teólogo, psicanalista e escritor, autor do livro “Crônicas de um divã feminino”, pela editora Autografia.